quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O QUINTO MILAGRE


Segundo os físicos, nosso corpo, e também o de todos os demais seres vivos, é um sistema aberto. Temos que retirar energia do ambiente para fazê-lo funcionar, e como numa máquina, há perdas, há dejetos. Já nascemos com certos controles que são acionados automaticamente nos momentos certos, a fim de que possamos manter o sistema. O produto final é a sobrevivência. Somos cheios desses controles que nos incitam à ação durante toda a nossa curta vida. A alguns deles chamamos de instintos.

O fluir da energia através do sistema causa desgastes nas peças utilizadas. Vão ficando velhas, usadas, quase imprestáveis. O pessimista Eclesiastes, escrito por Salomão, talvez num daqueles dias terríveis, em que tudo deu errado lá pelo reino, pinta o quadro sintomático da decrepitude humana (Ecles. 12:3) 

...no dia em que tremerem os guardas da casa, os braços, e se curvarem os homens outrora fortes, as tuas pernas, e cessarem os teus moedores da boca, por já serem poucos, e se escurecerem os teus olhos nas janelas...

Mas elas, as peças do corpo, não se desgastam todas por igual. Algumas vêm com defeito de fábrica, outras são mais ou mal utilizadas, e com a falência completa daquelas importantes, o sistema cessa de funcionar. Costuma-se denominar o desgaste contínuo, de envelhecimento, e o cessar da atividade do sistema, de morte.

O que fizemos durante todo esse tempo em que a energia fluiu pelo sistema? Resposta simples: vivemos, seja lá o que for que isso signifique para cada um.

Na morte, com o retorno dos elementos à terra de onde saíram, enxerga-se com mais clareza a degradação do corpo, a aparente vitória final da entropia, do caminho sem retorno delineado pelas leis da termodinâmica. Em um poema, dizia meu avô Tibério Burlamaqui diante dessa idéia:

Quando contemplo a sordidez dum verme
No baixo chão, nas cousas deletérias,
Das cloacas, dos monturos, das misérias
Da carne humana putrefata, inerme

Sinto um frio mortal pela epiderme
E ante o evoluir e força das matérias,
Creio e descreio em deduções bem sérias
Tremo com medo que meu corpo enferme

Contudo, mesmo o olhar mais displicente sobre o esquema acima, caracterizado por nascimento, crescimento e morte, deixa ver uma contradição fundamental entre a entropia, ou seja, o irreversível avanço para a desordem cada vez maior, e a vida, que atua exatamente no sentido contrário - a negentropia. E vem à mente uma questão, não sobre a manutenção organizacional de um ser vivo, mas sobre o momento exato do surgimento da vida: como foi possível surgir no Universo, algo que contraria frontalmente a segunda lei da Termodinâmica? E mais, como se manteve a despeito dela? A resposta não tem sido fácil e não é possível contornar o problema.

Há muito tempo que os experimentos de Stanley Miller e as idéias do sábio russo Oparin perderam sua importância. Em 1985, Leslie E. Orgel, em As Origens da Vida, ainda percorre os mesmos caminhos da formação de compostos pela ação de relâmpagos, da energia ultravioleta, das ondas de choque iniciais, chegando ao ponto chave: O principal problema intelectual apresentado pelas origens da vida está relacionado...a evolução da organização biológica. É isso mesmo, a solução não está no instante em que se formam tal ou qual aminoácido, mas ao surgir um mecanismo complexo como o da fotossíntese ou da respiração, altamente organizado e completamente contrário ao esperado. Afinal de contas, os relâmpagos, ondas de choque, etc, parecem ser muito mais agentes da entropia que o contrário.

Em 1997, Robert Shapiro, autor de outro livro especializado sobre o assunto, Origins: a Skeptic’s Guide to the Creation of Life on Earth, nada conclui, senão que:

Não conhecemos a receita essencial – o conjunto de ingredientes especiais e as formas de energia capazes de conduzir sistemas químicos pelo caminho da organização, nos primeiros passos da vida.

Esse caminho da organização, remando contra a maré da entropia, é que é o problema.

Mais tarde, em 2002, Paul Davies, em O Quinto Milagre – Em busca da origem da vida, diz que Parecemos estar diante de uma contradição perturbadora, e admite que a vida deve ter surgido através de um evento singular, que denomina brecha na entropia, sugerindo que a instabilidade gravitacional surgida logo após o Big Bang, seria responsável pela brecha, fazendo as coisas caminharem no sentido inverso à termodinâmica, até o surgimento da vida. Admite porem, que:

Fazer a fonte de informação remontar à gravitação e ao estado homogêneo do universo pouco depois do Big Bang, ainda nos deixa com o problema da semântica. Como foi que surgiu a informação significativa no universo?

Mais adiante capitula:

O que ainda falta explicar – o que sobressai como o enigma central não resolvido na explicação científica da vida – é o modo como o primeiro micróbio passou a existir”

O que dirá sobre o assunto, o arrogante Richard Dawkins, autor de Deus – um delírio (2007)? Na verdade ele nada tem a dizer, admitindo mesmo sua ignorância sobre a Química, que julga responsável pelo esclarecimento da questão. Mas admite a quase improbabilidade do surgimento da vida, para logo em seguida ensaiar uma explicação probabilística considerando o tamanho do universo.

Até agora, a verdade é que continua valendo a palavra de Jules Carles, no seu livro As Origens da Vida, quando afirmava em 1984, que a passagem da matéria inanimada à vida, fica por explicar e é mesmo cientificamente inexplicável. 

E o meu avô Tibério, sem fazer essas reflexões científicas, terminou intuitivamente seu poema negentrópico: 

Penso depois, talvez com fundamento,
Que dentro de mim mesmo alguém labuta,
Contra o invol’cro carnal e entendimento

É minha alma, Senhor, alma impoluta
Que um dia ascenderá ao firmamento
Livre da terra e da matéria bruta



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