Certamente o livro de Jó tem características especiais. É classificado pelos estudiosos da literatura bíblica entre os livros sapienciais do Tanach (Velho Testamento) e como tal, não trata dos temas veterotestamentários tão caros a Israel como a Eleição, a Aliança ou a Lei, mas de uma experiência pessoal. É também o único escrito em forma de diálogo.
Os que supõem que tenha sido escrito durante o Exílio Babilônico, vêem essa excepcional obra, como uma revisão da teologia da retribuição, espécie de toma lá, dá cá, entre Deus e o povo de Israel, que havia perdido tudo, inaugurando um novo pensamento sobre o relacionamento entre o homem e Deus. Na teologia cristã, o Justo Jó é visto como exemplo de paciência perante a adversidade, de persistência na fé (veja-se Tiago, 5:11).
Dentro do enfoque teológico, dois importantes pontos podem ser destacados no livro: satan trabalha em conjunto com Deus, como um dos seus anjos, ao contrário do que ocorrerá no Novo Testamento, onde será retratado como uma das faces da moeda (a outra é Jesus); e a atribuição de tudo a Deus, tanto o bem como o mal, o que é coerente com o fato de que satan ainda não era nome próprio e não competia com Deus pelas almas humanas.
Norman Gottwald em Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, 1988, faz uma leitura sociocultural da Bíblia, não se prendendo aos possíveis aspectos religiosos do texto. Para ele, a real intenção do autor do livro de Jó seria quebrar o domínio do moralismo e dogmatismo, que então limitava a sabedoria à mistificações, satisfazendo-se em demonstrar que existe sofrimento inocente, cuja explicação, às vezes, está alem de nossa compreensão.
Do ponto de vista psicológico, é interessante notar o que diz Geraldo Moog (1980), não apenas sobre esse livro bíblico, mas sobre toda a saga israelita, que compara ao processo psicanalítico de libertação do determinismo infantil. A seqüência psicanalítica passaria pelas seguintes etapas: desestruturação, encontro emocional e uma reestruturação da personalidade. Israel desestrutura-se tentando se libertar do Egito (sua infância) tem um encontro emocional com Deus no deserto e finalmente alcança a terra prometida.
Edward F. Edinger (Bíblia e Psique, 1990) concorda com esse tipo de leitura, sugerindo que o conteúdo bíblico, foi, ao longo dos séculos, selecionado pela psique coletiva, apresentando para nós, um compêndio extraordinariamente rico de imagens que representam encontros com o numinoso.
Essa sugestão de leitura psicológica da Bíblia vem de Carl Jung, que em uma de suas obras concentra-se em Jó (Resposta a Jó, 1954) interpretando a narrativa, como se referindo a um processo de crescimento individual, em que o ego em segurança (Jó com suas posses, família e saúde), sofre abrupta mudança (ação de Deus e de satan, como aspectos de uma mesma entidade – o Self), gerando uma crise no individuo. A nova situação causa um mergulho no inconsciente, de onde emergem as figuras dos três amigos com quem dialoga, e finalmente ocorre o que Jung chama de individuação - encontro com o numinoso, o Si-mesmo - que leva Jó a dizer: Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, meus olhos te vêem (Jó,42,5).
Bem antes dessas interpretações, Helena Petrovna Blavatsky em sua obra, Isis sem véu, escrito em 1877, entendia o livro como a descrição de um processo iniciático, uma narrativa alegórica dos mistérios e da iniciação de um candidato em uma instituição esotérica. O sofrimento do inocente e justo Jó, corresponderia às provas que purificam e que abrem os portais do conhecimento, do encontro da palavra perdida, que não seria outra coisa que a descoberta de Deus dentro de cada um de nós, objetivo de todo processo.
A junção desses dois conceitos – individuação e iniciação – é feita ousadamente por Jean-Luc Maxence, em Jung é a Aurora da Maçonaria, publicado em 2010 ao afirmar que:
Para além da questão de saber se a individuação é uma iniciação, e se a iniciação, um processo de individuação, trata-se aos nossos olhos de reconhecer que as duas posturas evocam um método de regeneração do individuo...
Fazendo jus ao mistério que cobre toda a Bíblia, o livro de Jó comporta assim, várias interpretações talvez correspondendo aos níveis de compreensão sugeridos pela Cabala, que fala de quatro níveis de aprofundamento do texto: Pshat (o sentido literal), Remez (o sentido alegórigo), Drash (o sentido ético ou religioso) e Sod (o segredo), a alma da Torah, excluindo qualquer leitura simplista do chamado Velho Testamento. Os quatro níveis, ou camadas, corresponderiam ao aperfeiçoamento espiritual por que passam os que se dedicam a estudar a Torah, o que não deixa de ser também uma sequência iniciática.
Muito bom!
ResponderExcluirJairo