sábado, 21 de janeiro de 2012

LEMBRANÇAS DE MINHA MÃE



Minha mãe - Iris Ferreira da Silva - foi minha primeira professora. Normal, afinal são as mães que permanecendo mais tempo junto aos filhos acabam por transmitir muito de seus hábitos, costumes e sabedoria. As primeiras tentativas de me desasnar vieram dela. Disseram para ela que o aprendizado seria facilitado se ministrado ali pelas primeiras horas da manhã. Era o ABC. Daquela época, dentre outras coisas, lembro que detestava comer galinha, que um dia me deram umas colheradas de óleo de rícino e que a água do pote era esterilizada com uma pedra aquecida jogada no seu interior. Talvez o método de minha mãe tenha apressado o aprendizado: um dia, sozinho, tive a suprema alegria de notar que conseguira ler. Desde então, apesar de ter recebido educação formal até o doutorado, a sensação de autodidatismo não mais me abandonou.

Gente muito boa, minha mãe. Guardo dela a lembrança de pessoa inteligente e sábia, embora sem educação formal. Dava-me conselhos e eu a consultava. Surpreendeu-me, certa vez (essas lembranças nunca morrem), na mais tenra infância, de brincadeirinhas com uma menina, e na repreensão gestual e sonora, deixou-nos apenas antever, sem repressão nem sustos, que aquilo era assunto de importância, como arquetipicamente já sabíamos.

Minha mãe era negra e a maior parte de minha infância passei entre tias e primos negros. Todos muito pobres. Brancos, só meu pai (que era dos Filgueira Burlamaqui), e a minha avó, mãe dela, Maria Pedro, descendentes dos Ferreira da Costa, de Jaguaruana-CE. Há aqui uma seqüência de casamentos mistos: meu avô negro com minha avó branca, meu pai branco com minha mãe negra, meu casamento com minha esposa parda, com filhos brancos e morenos. Darcy Ribeiro teria abençoado: mestiço é que é bom.

Uma lembrança dolorosa. Certa vez, em casa da minha tia Alcinda, ao anoitecer, ela achou que era hora de retornar, o que significava fim das brincadeiras. Como toda criança estrebuchei, chorei, mas fui levado de volta. No caminho, ao passar por um grupo de amigos um deles perguntou – Ói Marcos, essa é sua mãe? Com raiva como estava e ainda choramingando respondi que não. Recebi de minha mãe o cocorote mais doloroso do mundo. Pela primeira e única vez, recebi dela um castigo físico. Estranhei a violência e também porque ela chorou junto. Só muito depois entendi que a negativa tocara-lhe a alma de negra que tivera um filho branco. Antes tivera outro filho - José Maria - meu irmão negro, que morreu aos primeiros vagidos. O sobrevivente, alourado e de olhos claros, que ela parira, em casa, na Rua Alexandre Baraúnas, como era costume, negara-lhe a maternidade.

Tinha lá suas estranhezas, a minha mãe. Um dia meu pai me pediu para ter cuidado, por aqueles dias, por que a velha Iris havia sonhado com casamento e isso geralmente significava morte na redondeza. Não lembro se dessa vez a premonição foi verdadeira.   

Ela era protestante, embora desrespeitasse algumas das recomendações do cristianismo. Não ligava, por exemplo, para a afirmativa de Jesus de que o que torna impuro é o que sai, e não o que entra pela boca, pois me fez recomendação estrita para nunca comer sangue, em respeito à recomendação veterotestamentária. Daí, sempre sentir-me culpado, mesmo já adulto, ao comer a deliciosa galinha à cabidela feita por dona Maria, lá no Bar do Chico. Evitava quase todo o sangue, mas temia o castigo de engasgar-me com algum pedacinho de osso da galinha.

Pouco ortodoxa também era sua atitude de levar-me, às ocultas, ao fundo do quintal, para fazer orações à lua nova. Não lembro que palavras dizia, mas sei que fazia pedidos, mostrava objetos, minha camisa, a carteira de cédulas do meu pai, etc. Depois pedia segredo sobre o ato, em uma atitude muito parecida a dos marranos de Belmont em Portugal.

Minha prima Carmelita, em resposta a freqüentes solicitações sobre qualquer documento que esclarecesse os seus ancestrais, certa vez mostrou-me uma velha carteirinha da Assembléia de Deus, onde constava que o nome do seu pai era Manuel Pedro Varela, e de seus avós maternos, Antonio Ferreira da Costa e Francisca Raimunda de Jesus. Nos registros paroquiais de Areia Branca encontrei o seu batismo feito no dia 21/01/1921, filha legítima de Manuel Pedro Varella e de Maria Ferreira da Costa. Padrinhos: Manuel Leandro e Mariana Vasconcelos.
Uma única foto dela me restou. A foto do seu título de eleitora, já agora desfigurada, descaracterizada. Gente pobre era assim: foto só para documentos. Ficou a do coração, bem clara e para sempre.