sexta-feira, 11 de novembro de 2011

DIÁRIO DE UMA CRIANÇA CONFUSA

Hoje meu amigo Gabriel disse na escola, pra mim e pro Rafael, que ele tem um caderno que diz que é um diário. Ele não deixa ver. Daí me deu vontade de ler seus segredos. Meu pai não quer que eu vá brincar com ele na sua casa por que ele tem dois pais, um tem bigode e o outro não tem, parece uma mulher. Não sei por onde anda sua mãe. Minha mãe riu quando uma vez eu perguntei por que Gabriel tinha dois pais e eu tinha um pai e uma mãe. As vezes eu fugia  e ia brincar com ele.  Jogávamos bola com o pai de bigode e com outros meninos no quintal. As vezes brigávamos. Um dia Rafael brigou com Gabriel por causa de um gol, pois a bola não tinha entrado. Nesse dia o pai de bigode não estava, foi então que Gabriel bateu em Rafa, e Rafa disse que os pais dele eram viados e ele também. Gabriel bateu de novo nele, mas chorou depois. Na escola fizeram as pazes e ficamos juntos novamente. 


Um dia Rafa roubou o diário de Gabriel e me chamou pra ler escondido. Eu queria saber seus segredos, fui ler. Mas Gabriel descobriu, seguiu a gente e tomou de volta seu caderno. Só deu pra ler algumas partes. Ele não sabe escrever, só diz os dias.

 “Dia 25. Meu pai me ensinou a brincar no seu computador, mas foi rápido, chegou meu outro pai, se beijaram, desligaram o computador e foram para a cozinha. Ouvi meu pai dizendo; faça a barba homem que assim me fere... ”

“Dia 12. Tomamos banho todos juntos, nus. Eles notaram que eu estava olhando muito pra ... eles, então começaram a brincar comigo jogando água... e fizeram cócegas. Depois fomos comer pizza. Um dos garçons é amigo do meu pai. Ele chamou um dos meus pais de menina. Ele disse: calma menina! Meus pais brigaram no carro, pois um disse que o outro estava olhando muito pra não sei que rapaz. Daí o outro disse: e você, pensa que não sei de você e Michel? Trouxemos uns pedaços de pizza pra casa, mais comemos no caminho.” 

“Dia 25. Sonhei que um monstro estranho e colorido me perseguia. Devo ter gritado, pois quando acordei meus pais estavam lá comigo e disseram para dormir de novo. Cada um me beijou e me cheirou. Agora lembro que, no sonho eu tinha uma mãe.” 

“Dia 07. Ontem foi dia de festa aqui em casa. Meus pais convidaram um monte de gente. Alguns dos amigos trouxeram seus maridos ou namorados. A Anna também veio. Não gosto dela. Ela só quer tudo pra ela e me arranha e eu não posso bater nela. As mães dela, Elisa e Mary Ellen, me disseram, no meu ouvido, que se eu bater nela eu apanho. O John, amigo de meus pais, olha muito pra mim, acho ele horrível com aqueles brincos, cabelo colorido e calças apertadas. - Que garotinho lindo - ele sempre diz - vem cá pra eu ti dar um beijo amor! Eu sempre corro dele. As vezes ele traz garotos com ele, sempre novos garotos. Um dia perguntei se eram filhos dele, meu pai disse que não. Meu outro pai riu muito e disse que eu fosse brincar.

“Dia 20.Briguei com o Rafa, bati nele, ele disse que meus pais são viados, bati então com mais força nele. Tenho ódio. Pensei que ele era meu amigo”.

“Dia 05. Fui estudar na casa do Pedrinho. A mãe dele fez suco e sanduíches. Estudamos até as cinco horas. A irmã dele é muito bonita e tem um cheiro muito bom. O pai dele chegou do trabalho e brigou com Pedrinho por ter desarrumado suas coisas. Depois ouvi ele dizer baixinho pra mãe de Pedrinho: - que é que esse viadinho tá fazendo aqui em casa? A mãe dele disse: homem não diga isso, ele pode ouvir, coitado.”

“Dia 30. Tive outro sonho com o monstro colorido. Como sempre ele corria pra me pegar. Não vi minha mãe dessa vez. Acordei e corri pro quarto de meus pais e vi que estavam nus e um estava em cima do outro...”

Foi só o que deu pra ver no caderno. Acho Rafael muito mal, pois ele disse que ia contar pra todo mundo. O Gabriel chorava muito e gritava e saiu correndo com o caderno.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O QUINTO MILAGRE


Segundo os físicos, nosso corpo, e também o de todos os demais seres vivos, é um sistema aberto. Temos que retirar energia do ambiente para fazê-lo funcionar, e como numa máquina, há perdas, há dejetos. Já nascemos com certos controles que são acionados automaticamente nos momentos certos, a fim de que possamos manter o sistema. O produto final é a sobrevivência. Somos cheios desses controles que nos incitam à ação durante toda a nossa curta vida. A alguns deles chamamos de instintos.

O fluir da energia através do sistema causa desgastes nas peças utilizadas. Vão ficando velhas, usadas, quase imprestáveis. O pessimista Eclesiastes, escrito por Salomão, talvez num daqueles dias terríveis, em que tudo deu errado lá pelo reino, pinta o quadro sintomático da decrepitude humana (Ecles. 12:3) 

...no dia em que tremerem os guardas da casa, os braços, e se curvarem os homens outrora fortes, as tuas pernas, e cessarem os teus moedores da boca, por já serem poucos, e se escurecerem os teus olhos nas janelas...

Mas elas, as peças do corpo, não se desgastam todas por igual. Algumas vêm com defeito de fábrica, outras são mais ou mal utilizadas, e com a falência completa daquelas importantes, o sistema cessa de funcionar. Costuma-se denominar o desgaste contínuo, de envelhecimento, e o cessar da atividade do sistema, de morte.

O que fizemos durante todo esse tempo em que a energia fluiu pelo sistema? Resposta simples: vivemos, seja lá o que for que isso signifique para cada um.

Na morte, com o retorno dos elementos à terra de onde saíram, enxerga-se com mais clareza a degradação do corpo, a aparente vitória final da entropia, do caminho sem retorno delineado pelas leis da termodinâmica. Em um poema, dizia meu avô Tibério Burlamaqui diante dessa idéia:

Quando contemplo a sordidez dum verme
No baixo chão, nas cousas deletérias,
Das cloacas, dos monturos, das misérias
Da carne humana putrefata, inerme

Sinto um frio mortal pela epiderme
E ante o evoluir e força das matérias,
Creio e descreio em deduções bem sérias
Tremo com medo que meu corpo enferme

Contudo, mesmo o olhar mais displicente sobre o esquema acima, caracterizado por nascimento, crescimento e morte, deixa ver uma contradição fundamental entre a entropia, ou seja, o irreversível avanço para a desordem cada vez maior, e a vida, que atua exatamente no sentido contrário - a negentropia. E vem à mente uma questão, não sobre a manutenção organizacional de um ser vivo, mas sobre o momento exato do surgimento da vida: como foi possível surgir no Universo, algo que contraria frontalmente a segunda lei da Termodinâmica? E mais, como se manteve a despeito dela? A resposta não tem sido fácil e não é possível contornar o problema.

Há muito tempo que os experimentos de Stanley Miller e as idéias do sábio russo Oparin perderam sua importância. Em 1985, Leslie E. Orgel, em As Origens da Vida, ainda percorre os mesmos caminhos da formação de compostos pela ação de relâmpagos, da energia ultravioleta, das ondas de choque iniciais, chegando ao ponto chave: O principal problema intelectual apresentado pelas origens da vida está relacionado...a evolução da organização biológica. É isso mesmo, a solução não está no instante em que se formam tal ou qual aminoácido, mas ao surgir um mecanismo complexo como o da fotossíntese ou da respiração, altamente organizado e completamente contrário ao esperado. Afinal de contas, os relâmpagos, ondas de choque, etc, parecem ser muito mais agentes da entropia que o contrário.

Em 1997, Robert Shapiro, autor de outro livro especializado sobre o assunto, Origins: a Skeptic’s Guide to the Creation of Life on Earth, nada conclui, senão que:

Não conhecemos a receita essencial – o conjunto de ingredientes especiais e as formas de energia capazes de conduzir sistemas químicos pelo caminho da organização, nos primeiros passos da vida.

Esse caminho da organização, remando contra a maré da entropia, é que é o problema.

Mais tarde, em 2002, Paul Davies, em O Quinto Milagre – Em busca da origem da vida, diz que Parecemos estar diante de uma contradição perturbadora, e admite que a vida deve ter surgido através de um evento singular, que denomina brecha na entropia, sugerindo que a instabilidade gravitacional surgida logo após o Big Bang, seria responsável pela brecha, fazendo as coisas caminharem no sentido inverso à termodinâmica, até o surgimento da vida. Admite porem, que:

Fazer a fonte de informação remontar à gravitação e ao estado homogêneo do universo pouco depois do Big Bang, ainda nos deixa com o problema da semântica. Como foi que surgiu a informação significativa no universo?

Mais adiante capitula:

O que ainda falta explicar – o que sobressai como o enigma central não resolvido na explicação científica da vida – é o modo como o primeiro micróbio passou a existir”

O que dirá sobre o assunto, o arrogante Richard Dawkins, autor de Deus – um delírio (2007)? Na verdade ele nada tem a dizer, admitindo mesmo sua ignorância sobre a Química, que julga responsável pelo esclarecimento da questão. Mas admite a quase improbabilidade do surgimento da vida, para logo em seguida ensaiar uma explicação probabilística considerando o tamanho do universo.

Até agora, a verdade é que continua valendo a palavra de Jules Carles, no seu livro As Origens da Vida, quando afirmava em 1984, que a passagem da matéria inanimada à vida, fica por explicar e é mesmo cientificamente inexplicável. 

E o meu avô Tibério, sem fazer essas reflexões científicas, terminou intuitivamente seu poema negentrópico: 

Penso depois, talvez com fundamento,
Que dentro de mim mesmo alguém labuta,
Contra o invol’cro carnal e entendimento

É minha alma, Senhor, alma impoluta
Que um dia ascenderá ao firmamento
Livre da terra e da matéria bruta