Marcos Antonio Filgueira
(publicado na revista Menorah nº 411 de setembro de 1993)
Pouco a pouco, vai se impondo uma discussão do que se pode chamar,
talvez, de questão marrana no Brasil. É uma realidade que permanece
subjacente à nossa população, não sendo detectável, se for pesquisada
tendo em vista encaixar os indivíduos, assim nomeados, numa definição do
que seja um judeu.
Se você é como eu, um distante descendente de cristãos-novos
quinhentistas e que por vários caminhos e maneiras, tornou-se consciente
dessa origem e a valoriza, percorrerá esta revista, coluna por coluna,
página por página, linha a linha, na esperança de encontrar, mesmo que
seja curta referencia a marranos, cristãos-novos ou a possíveis ligações
das nossas famílias com velhos troncos judaicos da península ibérica.
Deve haver,pois, algo a verificar. Afinal, não se trata da busca
vaidosa de origens nobres. Trata-se de ascendência perseguida, a quem
normalmente se apodava mal. Ademais, organizam-se: Eder Barosh, Hélio
Cordeiro, outros.
Qual a razão de atitudes como essas?
Uma resposta fácil pode ser dada: tudo não passa da influência que o
pensamento judaico-cristão tem exercido em nosso meio, mormente através
do protestantismo; apenas fascínio das belas histórias
vetero-testamentárias, gerando em alguns de nós, o desejo de pertencer,
embora distantemente, ao povo eleito. Nenhuma relação com uma possível
origem marrana.
No entanto, se quisermos ir um pouco mais profundamente na questão,
seremos forçados a admitir que esta resposta, não satisfaz plenamente.
Talvez devamos lembrar que um microorganismo patogênico não é por si,
capaz de desencadear uma moléstia, sendo ainda condição necessária, a
predisposição do corpo para que ocorra a infecção.
Assim, supomos que certas linhagens, não tendo, ao longo de séculos,
se definido plenamente pelo cristianismo, por razões ligadas a sua
origem perseguida, continuam como que na expectativa de outra mensagem,
atualizando, ao perceber sua ancestralidade semita, o que de a muito lhe
era potencial.
Feita essa descoberta, passa-se a encontrar explicações plausíveis
para muitas das praticas e atos dissonantes do ambiente social onde se
acha imerso.
Casamentos consangüíneos, nojo em beber água na casa de defuntos
(antigamente toda a água era derramada), culto a lua nova, sangramento
total de animais abatidos para alimentação, signo de Salomão (estrela de
Davi) ou orações de santos católicos afixadas por trás das portas,
banho ritual e depilação dos mortos são alguns exemplos, dentre muitos
outros, desse culto inconsciente, dos quais quase, todo nordestino tem
exemplos na família.
Embora essas lembranças tenham sido transmitidas, no geral, sem a
intensão consciente de preservar uma suposta memória semítica, é
inegável que uma geração falou à outra geração, sendo bastante difícil
conceber que essa continuidade tenha se realizado por via cristã-velha,
quedando assegurada a ascendência judaica dos que até hoje repetem,
embora de forma estereotipada, as antigas práticas dos ancestrais
quinhentistas.
Toca profundamente no âmago dessa questão, o conto de Elie Wiesal,
intitulado ** Testamento de um judeu em Saragoça**, onde o personagem
guarda um manuscrito passado de geração a geração, escrito em garatuja
cujo significado ele desconhece, até o dia em que um judeu desvenda-lhe a
origem do alfarrábio iniciando aí, um conflito entre a sua fé cristã e a
conscientização de que alguns de seus antepassados, séculos atrás, eram
de origem judaica. Vence, no fim, a fé ancestral.
Irresistível a analogia, já que houve aí, também o desvelar de uma
verdade oculta desde muitas gerações, não transmitida geneticamente, nem
por tradição familiar consciente, a não ser meramente no que diz
respeito a guarda do documento e entrega à próxima geração.
O texto ficcional de Wiesel, nos aponta a solução real para a questão
marrana como uma tomada de consciência, redirecionamento e
aprofundamento desses fiapos de memória que ainda restam, tornando sem
significado quatrocentos ou mais anos que nos separam da fonte primeva.
Não se tenha, então, por absurda a ligação desses remanescentes com o
judaísmo, pois se não guardam no fundo de um velho baú, vetusto
documento comprovador de sua origem, trazem no próprio ser, marcas
indeléveis, simpatias e antipatias, velhas cicatrizes, nomes e
sobrenomes, como sinais claros que o tempo não conseguiu apagar.
Marranos? Cristãos-novos? Judeus? Não sei. Mas é certo que o
julgamento que fazem de si, independe, até certo ponto, do que possa
pensar a comunidade judaica. Porem se estes dois polos se dispuserem a
conversar, poderão construir uma ponte por onde passará um remanescente
de Israel que ainda se acha disperso.