quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

RAZÕES MARRANAS

Marcos Antonio Filgueira
(publicado na revista Menorah nº 411 de setembro de 1993)


Pouco a pouco, vai se impondo uma discussão do que se pode chamar, talvez, de questão marrana no Brasil. É uma realidade que permanece subjacente à nossa população, não sendo detectável, se for pesquisada tendo em vista encaixar os indivíduos, assim nomeados, numa definição do que seja um judeu.

Se você é como eu, um distante descendente de cristãos-novos quinhentistas e que por vários caminhos e maneiras, tornou-se consciente dessa origem e a valoriza, percorrerá esta revista, coluna por coluna, página por página, linha a linha, na esperança de encontrar, mesmo que seja curta referencia a marranos, cristãos-novos ou a possíveis ligações das nossas famílias com velhos troncos judaicos da península ibérica.
Deve haver,pois, algo a verificar. Afinal, não se trata da busca vaidosa de origens nobres. Trata-se de ascendência perseguida, a quem normalmente se apodava mal. Ademais, organizam-se: Eder Barosh, Hélio Cordeiro, outros.
Qual a razão de atitudes como essas?
Uma resposta fácil pode ser dada: tudo não passa da influência que o pensamento judaico-cristão tem exercido em nosso meio, mormente através do protestantismo; apenas fascínio das belas histórias vetero-testamentárias, gerando em alguns de nós, o desejo de pertencer, embora distantemente, ao povo eleito. Nenhuma relação com uma possível origem marrana.
No entanto, se quisermos ir um pouco mais profundamente na questão, seremos forçados a admitir que esta resposta, não satisfaz plenamente. Talvez devamos lembrar que um microorganismo patogênico não é por si, capaz de desencadear uma moléstia, sendo ainda condição necessária, a predisposição do corpo para que ocorra a infecção.

Assim, supomos que certas linhagens, não tendo, ao longo de séculos, se definido plenamente pelo cristianismo, por razões ligadas a sua origem perseguida, continuam como que na expectativa de outra mensagem, atualizando, ao perceber sua ancestralidade semita, o que de a muito lhe era potencial.

Feita essa descoberta, passa-se a encontrar explicações plausíveis para muitas das praticas e atos dissonantes do ambiente social onde se acha imerso.
Casamentos consangüíneos, nojo em beber água na casa de defuntos (antigamente toda a água era derramada), culto a lua nova, sangramento total de animais abatidos para alimentação, signo de Salomão (estrela de Davi) ou orações de santos católicos afixadas por trás das portas, banho ritual e depilação dos mortos são alguns exemplos, dentre muitos outros, desse culto inconsciente, dos quais quase, todo nordestino tem exemplos na família.
Embora essas lembranças tenham sido transmitidas, no geral, sem a intensão consciente de preservar uma suposta memória semítica, é inegável que uma geração falou à outra geração, sendo bastante difícil conceber que essa continuidade tenha se realizado por via cristã-velha, quedando assegurada a ascendência judaica dos que até hoje repetem, embora de forma estereotipada, as antigas práticas dos ancestrais quinhentistas.

Toca profundamente no âmago dessa questão, o conto de Elie Wiesal, intitulado ** Testamento de um judeu em Saragoça**, onde o personagem guarda um manuscrito passado de geração a geração, escrito em garatuja cujo significado ele desconhece, até o dia em que um judeu desvenda-lhe a origem do alfarrábio iniciando aí, um conflito entre a sua fé cristã e a conscientização de que alguns de seus antepassados, séculos atrás, eram de origem judaica. Vence, no fim, a fé ancestral.

Irresistível a analogia, já que houve aí, também o desvelar de uma verdade oculta desde muitas gerações, não transmitida geneticamente, nem por tradição familiar consciente, a não ser meramente no que diz respeito a guarda do documento e entrega à próxima geração.
O texto ficcional de Wiesel, nos aponta a solução real para a questão marrana como uma tomada de consciência, redirecionamento e aprofundamento desses fiapos de memória que ainda restam, tornando sem significado quatrocentos ou mais anos que nos separam da fonte primeva.

Não se tenha, então, por absurda a ligação desses remanescentes com o judaísmo, pois se não guardam no fundo de um velho baú, vetusto documento comprovador de sua origem, trazem no próprio ser, marcas indeléveis, simpatias e antipatias, velhas cicatrizes, nomes e sobrenomes, como sinais claros que o tempo não conseguiu apagar.
Marranos? Cristãos-novos? Judeus? Não sei. Mas é certo que o julgamento que fazem de si, independe, até certo ponto, do que possa pensar a comunidade judaica. Porem se estes dois polos se dispuserem a conversar, poderão construir uma ponte por onde passará um remanescente de Israel que ainda se acha disperso.